terça-feira, 3 de maio de 2016

Eu nasci em um domingo (e era feriado!)

O tema do post é parto.
 
Antes que alguém aponte a possível incoerência em discutir a respeito de parto e nascimento, quando já dissemos (em outro post) que não desejamos ter filhos, a contradição é inerente ao humanoconcordamos com Michel Odent: para mudar o mundo, é preciso mudar o modo como nascemos.
 
E como se nasce em nosso país?
 
Não é novidade para ninguém que o Brasil é o país com o maior número de cesáreas do mundo.
 
Segundo dados divulgados no portal DATASUS, 56% dos bebês brasileiros nascem por meio de uma cirurgia, a cesárea.
 
Na região Sul, o percentual é ainda pior: 62% de cesarianas.
 
Se observamos somente os números do setor privado, a situação se torna ainda mais alarmante.
 
A título de exemplo, apresentamos o número de cesáreas e partos vaginais na Unimed Fronteira Noroeste RS:
 
Operadora
Parto normal
Cesárea
Total de partos
Taxa de cesárea
352179/Unimed Fronteira Noroeste-RS
 
40
 
356
 
396
 
89,9%
Dados: Agência Nacional de Saúde (ANS), 2013.
 
Sim, quase 90% de cesárea!
Esse dado não é isolado, o número de cesarianas no setor privado de saúde é geralmente próximo do apresentado pela operadora Unimed Fronteira Noroeste.
 
Se quiser saber a taxa de cesáreas e partos normais do seu obstetra, entre em contato com sua operadora de saúde.
 
Resolução Normativa nº 368 da ANS determina que as operadoras são obrigadas a divulgar o índice de cesarianas e partos normais por estabelecimento e por médico.
 
Assim, o modo mais fácil de descobrir se seu médico realmente “faz” parto normal é solicitar (na sua operadora) o percentual de partos normais dele.
 
Para saber se seu médico é cesarista, você pode conversar com outras gestantes que foram atendidas por ele, observar se ele nunca desmarca alguma consulta em razão de estar acompanhando um parto normal, verificar se ele diz/faz coisas do tipo:
 
·      “Vamos falar sobre o parto só quando chegar a hora do TP (trabalho de parto) ou quando você estiver com 36 semanas” = “daí já podemos marcar a cesárea”;
·      Não incentiva você a se preparar para o parto, não explica sobre a fisiologia do parto;
·      Se você fala que deseja ter um doula, ele diz algo como “só tome muito cuidado com a doula, porque muitas atrapalham o trabalho do médico, colocando em risco a vida da mãe/bebê”;
·      Comenta que você não tem dilatação (nas consultas do pré-natal), que sua bacia é muito estreita, que você é muito magra, muito gorda, muito alta, muito baixa, muito jovem, muito “velha” etc.
 
Ok, atualmente o modo como nascemos (a maior parte de nós, pelo menos) é via cirurgia cesárea. Qual é o problema?
 
O problema não é a cesárea, aliás, esta cirurgia é muito importante em alguns casos (poucos mesmo, cerca de 1 em cada 10). Responsável por salvar vidas,quando indicada com base em uma necessidade real.
 
O problema é a cesárea realizada sem necessidade, a cesárea eletiva (agendada), escolhida por comodidade, do médico e/ou da gestante.
 
Afinal, cesárea é cirurgia.
 
Eletiva ou necessária, a cesárea NÃO é isenta de riscos.
 
Quando a indicação é real, o consenso é de que os benefícios superam os riscos.
 
Segundo Moysés Paciornik (obstetra e pesquisador, realizou um grande trabalho de defesa do parto natural, do parto de cócoras, do parto indígena), no livro “Aprenda a nascer e a viver com os índios”, os riscos de uma cesariana desnecessária são:

“O médico assume a responsabilidade de substituir a natureza. As decisões ficam sujeitas a falhas humanas. Pressões de pacientes, de familiares, compromissos e necessidades socioeconômicas. Erros de tempo. Crianças prematuras. Maior morbidade e mortalidade fetal. Materna, também. Infecções, hemorragias, mortes. Maiores despesas. Internamento prolongado. Recuperação mais difícil. Sequelas frequentes”.
 
A OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda que o número de cesáreas não ultrapasse 15%.
 
Como podemos perceber, estamos bem longe de uma taxa considerada saudável de cesarianas.
 
Um dado empírico (e nada científico) que é representativo do alto índice de cesáreas é o número de nascimentos aos domingos.
 
Sim, porque nascer no domingo (médico e gestante saindo correndo para o hospital em pleno final de semana) é evento cada vez mais raro.
 
Eu nasci (via vaginal) em um domingo e ainda era feriado (dia das mães)!
 
Ah, para piorar, era dia de jogo do Brasil contra a Alemanha Oriental, no Maracanã, último jogo da nossa seleção antes da Copa do Mundo de 1990.
 
O obstetra ficava um olho na mãe, um olho na televisão. Gol do Brasil! Gol do bebê!
 
Se fosse hoje, acho que teriam agendado para eu nascer uma semana antes, porque vai que o nenê resolve nascer no feriado, né?
 
Como comenta o médico Ricardo Jones, no documentário “O Renascimento do Parto”, combinamos com o obstetra, com a família que o bebê vai nascer quarta-feira, 10 horas da manhã. Mas o bebê sabe desse combinado? Ele está pronto para nascer na data e no horário agendados?
 
Conversa fictícia:
Obstetra (olhando a agenda): Vamos marcar sua cesárea para quinta-feira, dia 10.
Gestante: Não poderia ser na sexta, doutor? É que é aniversário do meu marido.
Obstetra (ainda verificando a agenda): Olha, vai ter que ser na quinta mesmo, pois na sexta eu vou viajar, daí você vai ter que fazer com outro médico.
Bebê (pensando, na sua agitada vida intrauterina): ah, acho que vou nascer no domingo, dia 13. Enquanto o dia não chega, vou aproveitar para dar um cochilo, que aqui tá muito bom. 
 
É, agora é meio difícil nascer no domingo, acho que vamos pegar o bebê meio de surpresa, no meio do seu cochilo. Poderia até ser engraçado se fosse pura ficção.
 
Com a maior medicalização do parto, com muitas intervenções (episiotomia, ocitocina sintética, anestesia epidural, posição decúbito dorsal etc.), o parto, na maior parte dos casos, deixou de ser evento fisiológico. A gravidez e o parto se tornaram patologias aos olhos de muitos(as).
 
No Brasil, o padrão é nascer através de uma cirurgia. Mas por que as mulheres preferem a cesariana? Será que elas (nós) preferimos mesmo?
 
  • Algumas não preferem, gostariam de ter um parto normal, mas não encontram profissionais dispostos a acompanhar o parto.
  • Algumas optam pela cesárea porque desconhecem seus riscos e acreditam (erroneamente) que ela seja mais segura do que o parto vaginal.
  • Algumas têm medo da dor e/ou pouco conhecem sobre a fisiologia do parto. E o desconhecido, como sabemos, costuma provocar medo.
  • Algumas, apesar de em teseconhecerem as vantagens do parto vaginal (algumas obstetras incluídas), preferem a cesárea talvez simplesmente porque alguns preferem amarelo, outros azul (questão de gosto, dirão).
 
Porém, nascer por meio de um parto “normal” às vezes também pode ser anormal, no sentido de não respeitar a fisiologia do parto.
 
Sim, porque um parto em que a gestante não pode estar acompanhada de um familiar/amigo, não pode se movimentar durante o TP, não pode escolher a posição em que se sente mais confortável para parir, enfim, não tem seus desejos respeitados pela equipe médica, não pode ser considerado normal.
 
Infelizmente, independente da escolha, parto normal ou cesárea, muitas mulheres sofrem violência obstétrica.
 
Por isso, se fala tanto de humanização do parto. Porque a violência com a gestante e com o bebê é mais frequente do que imaginamos.
 
É importante não nos esquecermos de que a humanização refere-se às pessoas, aos profissionais (obstetras, enfermeiras, doulas, parteiras), não aos lugares.
 
Parto humanizado não é parto na banheira, não é parto num quarto com música ambiente ou maternidade com cine parto (que transmite ao vivo a cesárea para os familiares).
 
O parto é humanizado quando os desejos/vontades da mulher são respeitados.

Parto humanizado é quando a mulher é protagonista.

Quer parir de cócoras, quer parir de quatro, quer parir deitada, pode ser.
 
Quer parir na cadeira de parto, na água, na cama, pode ser.
 
Quer parir em casa, quer parir no hospital, pode ser.
 
Parto humanizado é quando o ambiente é acolhedor.
 
A OMS recomenda que cada mulher possa parir no local em que se sente mais segura, mais confortável.
 
Para o parto ser humanizado não é preciso dinheiro, não são necessários grandes investimentos em tecnologia e infraestrutura.
 
Para o parto ser humanizado só é preciso vontade, dedicação, respeito à mulher e ao bebê, respeito à fisiologia do parto, amor. Sim, precisamos também de mais amor.
 
Precisamos amar mais as mulheres grávidas. Precisamos amar mais os bebês.
 
Prova de que a questão principal não é dinheiro, prova de que a humanização está nas pessoas é o trabalho realizado pelo Hospital Sofia Feldman, em Minas Gerais.
 
Hospital do SUS e humanizado. Verdadeiramente humanizado.
 
Temos um longo caminho para combater a “epidemia de cesáreas” no Brasil (a expressão é da OMS), para proporcionar às mulheres e aos bebês mais respeito, mais acolhimento, mais amor.
 
Esse caminho passa, conforme Michel Odent, pela figura da parteira. Nesse sentido, o parto precisa deixar de ser um evento médico, uma patologia. O parto deve voltar a ser o que sempre foi, desde as primeiras mulheres que pariram, um evento fisiológico.
 
Dentro de todas nós, mulheres, existe uma força, um poder que nos torna capazes de parir.
 
Não é obrigação de ninguém parir. Não se é menos mulher, menos mãe por ter feito uma cesárea. Assim como não se é menos mulher por decidir não ser mãe.
 
Mas, com certeza, a experiência do parto deve ser única e emocionante. Talvez o único momento que me faça invejar as mães, é que elas podem passar pela incrível e desconhecida experiência do parto natural.
As doses de ocitocina natural (o chamado hormônio do amor) liberadas durante o TP nunca mais serão tão altas.
 
A ideia é que cada mulher possa ter acesso à informação de qualidade, à medicina baseada em evidências, à profissionais humanizados, para que, informada e bem acompanhada, possa escolher como e onde deseja dar à luz.
 
O caminho para humanização do parto, do nascimento, passa também pelas mulheres. É preciso informar-se, empoderar-se!
 
Esta discussão é importante para as mulheres, para os homens. Não desejo ter filhos, mas conviverei com os filhos das mulheres que optaram por ser mães. O modo como nascemos, portanto, interessa a toda a sociedade.
 
PS: Pode ser que, em algum momento, voltemos a escrever sobre o tema aqui no blog.
 
Referências e dicas de leitura:
 
Sites:
www.datasus.gov.br (Departamento de Informática do SUS).
 
www.ans.gov.br (Agência Nacional de Saúde).
 
Livros:
O camponês e a parteira. Michel Odent. Editora Ground.
 
Aprenda a nascer e a viver com os índios. Moysés Paciornik. Editora Rosa dos Tempos.

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